domingo, 11 de janeiro de 2015

O LEÃO DA NEMÉIA

    Por Abelardo Domene Pedroga
Ele abre os olhos. Ainda está sonolento. Por uma das entradas da caverna que lhe serve de morada entram os raios de Hélios, o Sol, que concede ao mundo sua luz benfazeja. Ainda lerdo, fruto de uma noite bem dormida fica a admirar a pujança dos raios dourados que se derramam sob a terra. Mais desperto ele sai da sua morada e admira a densa floresta que a cerca. Ali é seu mundo particular, sua casa, o local que ele escolheu para morar. Sua mente se volta para o lar materno. Equidna, sua mãe não gostou de ser abandonada, mas quem poderia lhe privar da liberdade, e da vida fora dos cuidados maternos? Com dor no coração a mãe o deixou partir.
 Ao sair da casa onde nasceu ele foi percorrer o mundo, curioso se embrenhou por florestas, andou por planícies enormes, seguiu o curso de rios sem fim. Enfim foi ter àquela região que chamam de Neméia. Esse nome pouco importa para ele, mas ali encontrou um excelente refúgio, uma fauna rica e diversificada que lhe serve de alimento, rios caudalosos de águas límpidas e frescas que matam sua sede.
Filho de monstros, sua pele é invulnerável, portanto nada há a temer de outros predadores, ao invés disso seu urro quando ecoa pela floresta é o sinal para que todos procurem abrigo, pois ali ele é supremo soberano.

Seu reinado é tranqüilo, totalmente ciente de sua força e invulnerabilidade. Há outros predadores que poderiam tentar lhe usurpar a supremacia na floresta, mas ante sua presença eles retiram-se. Quanto às presas elas muitas vezes se conformam com seu destino, não há esperança de escapar daquelas garras indestrutíveis que podem destruir aço e pedra. Muitas vezes antílopes e javalis ficam paralisados de medo, e deitam-se ao chão, apenas aguardando que as poderosas mandíbulas dêem cabo de suas vidas.
Ele não é imortal, mas sua vida será bem longa, seu corpo não pode ser infectado por doenças, com a pele invulnerável nunca poderá ser ferido, tendo caça e água para suas necessidades alimentares em abundância nada há a temer. Como é um leão ele vai ficar ali, não eternamente, pois não é imortal, mas por um longo tempo.

Mas nem sempre as coisas ficam do mesmo jeito. Há pouco tempo atrás à maldita raça a que Prometeu deu existência aventura-se por todo o mundo. Eles se chamam humanos e estão se espalhando por Gaia, tal qual uma praga sem controle.
Enfim chegam àquelas paragens. Em pouco tempo reclamam para si a floresta. Querem os habitantes dali como seus alimentos. Quanto à madeira das árvores pretendem usar para construir seus ninhos, suas armas, suas máquinas estranhas e barulhentas, sua civilização.
Mas ali é seu lugar, a Neméia é uma região ainda indomável, floresta virgem, rios limpos, vida exuberante, onde viceja a vida selvagem, sem inclusão dos homens.
Irritado com a intromissão humana ele reclama para si a defesa do seu lar. Confia que nada consegue feri-lo. Ataca os humanos, mata diversos deles, alguns usa como alimento. Após satisfazer sua fome devolve os restos dos cadáveres, como um aviso: isso é que espera a todos vocês caso não saiam de meu território.
Sua fama se espalha entre os humanos, diversos deles tentam o impossível, destruir a fera que mata e destroça quem se aproxima da Neméia. A pilha de cadáveres que resulta destas tentativas infrutíferas poderia erguer um gigantesco templo a Zeus, usando-se apenas os ossos resultantes da matança como material de construção.

Mas é de Zeus exatamente que surge um oponente. É Héracles, mais um dos muitos filhos bastardos do deus supremo do Olimpo.
O valoroso guerreiro serve a Euristeu, seu meio-irmão, paga pelo hediondo crime que cometeu sob a influência de Hera. O grande Héracles matou três de seus filhos. A irmã, e também esposa de Zeus não lhe dá tréguas, essa foi apenas mais uma das muitas provações pelas quais ele vai passar até ser aceito junto aos deuses do Olimpo.
Euristeu teme o irmão, e esse temor o leva a propor que Héracles cumpra doze missões. Uma delas é exatamente essa: matar o devorador de humanos, o temido e odiado Leão da Neméia.
O herói grego se aproxima da densa floresta. Seus olhos percorrem o local com atenção, enfim ele embrenha-se pela mata, e começa a andar. Muito se passou antes do encontro. Os dois olhares enfim se encontram. O leão sente que aquele não é um oponente comum, quanto a Heracles também há respeito pela fera. Não há o que esperar, o embate tem início.
De posse de sua maça o humano lança-se com fúria desmedida contra o animal, o choque titânico provoca um frenesi de destruição. Árvores tombam, pedras são despedaçadas, o rio tem suas margens agitadas. Os seres da floresta esperam pelo final do combate. A floresta fica muda apenas se escuta o barulho da luta sem trégua e sem decisão.

A arma do herói não causa nenhum tipo de ferimento na fera, com agilidade ele consegue evitar tanto as garras quanto as presas do adversário. Um dia inteiro se passa, e de repente silêncio. Eles separam-se, os olhos fixos um no outro. Os oponentes estão extenuados, o leão ruge com dificuldades, o humano respira ofegante. Hélios abandona a Terra, a decisão daquele confronto ficará para o dia seguinte.
Somente os deuses, e quiçá nem mesmo eles podem saber o resultado daquele embate. O leão retira-se, o cansado herói não se dá por vencido e o segue a distância. Enfim a fera adentra sua caverna. Héracles percebe que a caverna que serve de abrigo à fera tem duas entradas. Durante a noite o leão dorme, o herói trabalha. Com cuidado para não despertar o oponente o grego empilha diversas pedras em uma das entradas da caverna, enfim se dá por satisfeito, por ali o leão não conseguirá escapar.

Coragem nunca faltou, nem tampouco faltará ao filho de Zeus, menestréis hão de contar e cantar isso por todo o mundo. Ele se prepara para o dia seguinte, idealiza uma estratégia que lhe vai garantir a vitória.
Consegue dormir um pouco, seus sonhos mostram Héracles em triunfo diante do corpo sem vida da fera, mas Destino é um deus traiçoeiro e cruel, o imponderável pode e deve acontecer: quem tinha a certeza da vitória pode ser derrotado, e o derrotado pode erguer-se triunfante.
O dia está a clarear, é quando o grego ataca, sem temor adentra ao covil da enorme fera. A caverna é estreita, mas ele avança assim mesmo, depois de um trecho os olhos se encontram, o leão fica aturdido. Até então ninguém ousara entrar em sua toca, muito menos chegara a atacar ele ali. Mas o humano é corajoso, e usa de astúcia e inteligência.

A fera se lança contra Héracles, este usa os braços e mãos como tenazes, segura de maneira firme a garganta do adversário, usando a força descomunal e lendária que vai eternizá-lo pelo mundo afora ele começa a sufocar o leão.
Milímetro a milímetro as mãos afundam a garganta do monstro, este tenta se defender, mas Héracles o segura com força, sem muito espaço para fugir o leão percebe enfim que tal qual seu pai e muitos dos seus irmãos sua hora chegou, logo Tânatos, o da foice afiada, estará ali, e com um golpe certeiro há de lhe tirar o último fôlego.
Sem mais forças o leão ainda vê o invencível inimigo usar suas próprias garras para lhe perfurar o ventre, no futuro imediato Héracles usará a pele do inimigo como uma couraça impenetrável.
Tânatos, implacável como sempre, chega, a foice é certeira, o fio da vida que prende o leão a esta realidade é cortado e a Neméia enfim é conquistada para a raça humana.

Héracles junta a carcaça sem vida e esfolada, vai levá-la a Euristeu, prova de que cumpriu sua tarefa. No Olimpo Zeus sorri com o triunfo de seu rebento. Longe dali uma mãe se desespera. Equidna nem ao menos terá o consolo de poder enterrar o filho.
Quanto aos humanos eles olham para a floresta com o típico olhar de cobiça dos de sua raça, logo árvores serão abatidas, animais de todos os tipos encontrarão a morte. A Neméia e seus recursos enfim servem à raça criada pelos deuses, com a morte de seu defensor nada mais há que impeça a devastação.
As lendas e futuras histórias vão falar da coragem e determinação de Héracles, mas nenhuma palavra será dita sobre a desventura de um leão que apenas tentou defender seu território. Afinal foram os humanos que chegaram com sua sanha assassina, ao animal nada mais restou que enfrentar os usurpadores de seu lar, não fosse o filho de Zeus talvez tivesse conseguido preservar aquele pedaço perdido do paraíso, mas tal qual outros monstros também o leão mostrou-se impotente diante do poderoso adversário, com isso mais uma floresta, seus recursos e sua vida bela e natural foram destruídos. Mas isso, a história nunca fala....

Nenhum comentário:

Postar um comentário